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Um esboço teológico: Deus e nós mesmos

Uma coisa interessante é que, seja pelo viés metafísico seja pelo materialista, não deveríamos nunca estar nos aborrecendo, ou aflitos, com o que quer que fosse. Se algo de ruim nos acontece, é a vontade de Deus. Deus sabe o que faz, logo ficamos serenos e deixamos o problema transcorrer confiantes. Mas, se Deus não existe, tampouco há que se esquentar a cabeça. Algo de ruim nos aconteceu? Que bobagem, amanhã morreremos todos, vale a pena esquentar com isso? A vida acaba e com ela o sofrimento. Crentes e ateus unidos na convicção de que não vale a pena sofrer.


Falar é fácil. Sofrer faz parte de estarmos vivos. A vida é, com o perdão da redundância, viva, e almejamos, desejamos, anelamos, aspiramos,algoAlgo qualquer. E é bom que seja assim, não querer é estar morto, é estar estagnado, conforme falei no post, Fernando Pessoa (aliás, Alberto Caeiro) como imagem, "O não querer é contrarrevolucionário". O grande segredo talvez seja não "não querer", e sim querer sem sofrer. Seria a solução dialética do problema, o "querer" de um lado, como elemento impulsionador da vida, combinado com a ausência de sofrimento por tal querer, pelo contrário, combinado com a alegria por termos ânsia, vontade. Ficamos com o que é bom, deixando de lado o inconveniente no "querer". Fazemos assim do querer uma fonte de alegria, pois se querer é estar vivo, temos vida, e vida em abundância (copyright João 10:10).


O assunto está relacionado a Deus, e não foi por outro motivo que comecei o post falando em crentes e ateus. Quando queremos algo, a quem pedir? Quando crianças, ao pai, quando adultos, ao Pai, com maiúscula. Não digo com isso que os crentes sejam infantis, apenas que há uma paralelo entre as duas posturas, a da criança e a do adulto, de recorrer a alguém superior, quando a nossa capacidade não basta. Não me parece ilógico esse pedido de intercessão. Sendo o pai o responsável pelo filho, vai atendê-lo, incluindo sendo esse pai -caso seja- o Pai em maiúsculas. Pois parece-me que, se Deus existe, intercede, e cotidianamente, neste mundo. Chegaria às raias do absurdo conjecturar um Deus que, após criar o mundo, o abandonasse à própria sorte. É Henry Miller que disse que Deus criou o mundo e entrou nele. Deus, pois, se existe é engajado, e se é engajado participa conosco dos reveses. É por isso que repudio a ilação reducionista entre religião e alienação, como se não pudesse ser a religião, ser Deus, fonte de força transformadora, real, em nossas vidas.


Ler os autores zen, Osho em especial, costuma me trazer uma enorme alegria. Conforme se avança nas palavras, nos conceitos, sentimos uma emoção profunda crescer, semelhante a uma descoberta. Mas, paradoxalmente, essa leitura também traz um medo consigo. Afinal, somos convidados a despertar. Não há o paraíso nem o inferno num futuro distante, não há o milagre sobrenatural nem a divindade que irá, miraculosamente, nos salvar. Não há nada. A não ser nós mesmos. Nós mesmos...Quando pensamos que a "salvação" só depende de nós, sentimos calafrios. A quem recorrer? Mas como, quem nos salvará? Nós mesmos...Isso dói, arranca o chão, tira os cobertores. E, sem véus, encaramos a realidade como ela é. Essa é a principal contribuição que o budismo (o zen em particular) me dá.


Essa questão lembra a fala de Marx, na "Introdução à crítica da Filosofia do Direito de Hegel", sobre como a flor falsa deve desaparecer: não para que fiquemos sem flores, de jeito nenhum, mas para que a flor real nasça. Pois é a realidade que deve brotar, não a ilusão, não a Matrix. A realidade, como ela é, e só por ser realidade já é preferível à ilusão.


O hinduísmo também trabalha, como o budismo, com o conceito de ilusão.O convite é justamente para superá-la:


Ó descendente de Bharata, ó vencedor do inimigo, todas as entidades vivas nascem em ilusão, confundidas pelas dualidades surgidas do desejo e do ódio/ Aqueles que agiram piedosamente tanto nessa vida quanto em vidas passadas e cujas ações pecaminosas se erradicaram por completo livram-se da ilusão manifesta sob a forma de dualidades e ocupam-se em servir-Me com determinação. (Bhagavad Gita, 7: 27, 28)


O que seria duro, para o crente, é se o mesmo Krishna, que faz esse apelo contra a ilusão, for ele próprio ilusório, produto humano. É perturbador, para o crente: a derrubada pela raiz do seu conforto, de seu alívio, de sua esperança.


Tudo conjectura. Se não se pode matematicamente provar Deus, tampouco se pode negá-lo. Deus é uma ideia que faz sentido para mim: havendo efeito, há causa. Não concebo o universo do nada, surgindo aleatoriamente por uma combinação físico-química qualquer; parece haver uma causa consciente por trás disso. Dê a essa causa consciente o nome que se queira.


Uma coisa, todavia, me parece clara. Essa causa consciente, caso seja real, colocou em nossas próprias mãos o livre-arbítrio. Vale dizer que a salvação é um processo do aqui e agora, vale dizer que a salvação, o que quer que seja isso, depende, mais do que nunca (e talvez absolutamente), de nós mesmos.

AUTOR: J.L Tejo
SOBRE: Tejo, advogado, residente no estado do Rio Janeiro, autor e idealizador do blog ELOGIO DA DIALÉTICA

*Todos os créditos  reservados ao autor


sábado, 21 de agosto de 2010 | posted in , , , , | 1 comments [ More ]

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